26.4.19

queres saber?

queres saber?
explico-te
o que é falta

acordas de um pesadelo
a noite nunca alcança o sol
e não tens um nome para gritar

no joelho uma ferida
com aquele olhar vermelho
a latejar pelo beijo que alivia

um choro atrás da porta
abundância de lágrimas sem som
à espera do conforto de um abraço

queres saber?
explico-te
o que é dor

depois de jungs e lacans
de rendilhar amorosamente uma família
descobres a falta de um rosto para lembrar.

25.4.19

constatações de um fim de tarde

estou só
e isso não me dói
esta solidão é escolha minha
troféu de minhas liberdades conquistadas
parceira dos meus desnudamentos
dos livros que guardo com ciúme de amante
das transgressões bukowskinianas
de prazeres que me permito nas minhas reinvenções
não
ela não me dói
nem tenho medo de evocá-la
solidão só me machuca
quando vira ritual de desacompanhamento.

23.4.19

teia

sabia 
precisava despir-nos 
daquela pele de casal  

o coração do fogo
lambia minhas vontades 
:
um dia eram as chamas 
no outro as geleiras 
um dia era o corte 
no outro as suturas
  
e o tempo a nos separar   
na teia  que a realidade tecia. 

nós e nossos passos

como se estivéssemos  
chegando 
à beira dos dias 

como se pudéssemos  
mergulhar 
em minutos repetidos 

como se conseguíssemos 
anular 
as nossas omissões 

insistimos 

a cada ano 
reinventamos 
um tempo novo 
que de novo 
terá nossa espera 
construções 
e outras alianças 
: esperança 

então  
novamente seremos nós e nossos passos 
sob a chuva fina 
de um verão que anunciará outros e novos arco-íris. 

mar adentro

tua poesia 
escrita com a minha língua 
(furioso poder 
de oceano) 
inundou-nos por inteiro 
desde o verso primeiro 
(a ondular  
em teus lábios) 
até o expirar em gotas 
da última rima 
(afogada) 
no profundo da minha boca. 

mandacaru


seus braços  
enlaçaram-me por trás  

a boca  
pendurou em meu pescoço  
seu colar de mentiras e aquele cheiro de outra 

meu corpo fechou a questão 
: plantei-me mandacaru 

noite de segunda

outono de vinte e dois graus
um bilhão de estrelas a furar o custo baixo das cortinas
uma taça de vinho vazia nas mãos
os apartamentos modernos não têm paredes
têm biombos de alvenaria
antes que eu tenha o impulso de cortar os pulsos
dos vizinhos
tento um porre bebendo gole a gole a ursa maior
não nasci com instintos assassinos
adquiri-os a cada paixão
algumas pessoas têm o dom de me enlouquecer
meu Deus
como é idiota esta falta de talento para monumentar porres!

13.4.19

ave maria da penha



hoje uma mulher acordou sozinha

a cama tinha jeito de sonho
seu corpo sem marcas de dedos
as cortinas lhe davam bom-dia
não havia roupa suja pelo chão
o quarto sem cheiro de bebida
no tapete o cachorro dormia
e debaixo do travesseiro
não havia a arma do marido

hoje uma mulher acordou sem medo

os seios não tinham hematomas
não havia dor ao pentear os cabelos
seu estômago cantava de fome
a calcinha não estava rasgada
seu filho respirava tranquilidade
ouvia o som das juritis no telhado
o silêncio nas portas do armário
a certeza do amanhã pendurada no dia

hoje uma mulher tomou posse de sua vida.

quando era paixão

vivíamos suspensos
na respiração um do outro
nas mãos que se comiam lascivas 
nas línguas que inventavam tempestades
gozávamos intensidades
no abraço de nossas satisfações
sonhávamos o próximo gozo
e se um de nós morria
a fome do outro soprava-lhe vida
agora a paixão virou amor
sem nenhum incêndio que ameace nossos edifícios
então não me peça licença
tenta-me
surpreenda-me
faça-me novamente flor de coitos
mate-me para que eu possa me desfolhar em ti
o amor guardaremos para o final do outono.