29.10.19

monólogo a la pressão


esta coisa
que chamam depressão
tem gosto de medo
dor do vazio
um nada que nunca sei de onde vem
nem quando quer ir embora

pra lá de enganosa
não passa da afirmação
do fluir e do destruir dionisíaco
sabedoria trágica do já conhecido
que me leva a escrever escrever escrever
em busca do sentido de existir

desconfio
tenho quase certeza
depressão é minha carne exposta ao vir-a-ser.

Lourença Lou

2.10.19

inversos


tantos eus
recantos de contos
nudez
marcas de perfis
laçadas
pontas lúdicas
fluxos
traços de luz
contas
tantas no entanto
dígitos
pálidos atritos
línguas
notas indecisas
lícitas
universos sem fim
pontos de nós
fios
inversos de mim.

sabado sem cura

há um verso se insinuando em mim
o verso conversa
cutuca
maltrata
desperta suspiros
debochado
enfia as unhas
na minha seriedade
me mostra o corpo
embrulhado em outro corpo
corta meus pulsos
e me promete delicadezas
este verso é um grão de mostarda
cresce anormal
espinho na carne
sem nenhuma promessa de cura
sem nenhuma possibilidade de poesia
só um sábado frio e de mau humor
chove
não há guarda-chuva que me faça boa companhia.

plantações

durante anos
plantaram cadeados
em meus sonhos e ideais
sobrevivi
à falta de amanhãs
plantando no imaginário
um campo de mandacarus
em cada raiz
uma chave para minha resistência
e a liberdade de cultivar espinhos e heróis
hoje mato meus dragões com a colheita de versos.

30.9.19

mau gosto existencial

neste país
há um mau gosto execrável
arrota-se o que não existe
engole-se merdas para escondê-las
vomita-se o que não se comeu
e se dá descarga no pretérito perfeito

neste país
há um mau gosto que resiste ao tempo
desde mil e quinhentos
ele se aproveita
das nossas gangorras políticas
do nosso menosprezo existencial

neste país
acredita-se que bacurau é apenas crítica social


censores eletrônicos são mais efetivos em separar o joio do trigo.

8.7.19

dos muitos silêncios


todos os dias
antes do nascer do sol
o silêncio caminhava comigo

cães dormitavam indiferença
gatos pulavam muros
a levitar como sombras
meus pés calavam
os fantasmas
que se deitavam entre as pedras
e nem minha respiração
interferia na plenitude do silêncio

não lidava bem com esta falta de som

depois de ler Mia
descobri
há vários silêncios à minha volta
e todos falam comigo

os silêncios não são iguais
igual é o medo de neles penetrar.

Lourença Lou

24.5.19

sempre-vivas

pus um sorriso novo
cílios postiços
batom a sujar os dentes de vermelho
coração batendo enviesado
em busca da palmeira
onde me encantou um sabiá

pus uma flor
no lado direito dos cabelos
as coxas a arrebentar as costuras dos jeans
a respiração fazia os peitos empinarem
e o olhar era de gula
na palmeira que indiferente continuava seu dançar

ele me chegou com flores nas mãos
e um jeito de amor à antiga

em dois passos minha boca esquentava a sua
meu juízo se perdia
na certeza das suas vontades
entreguei-me puta
e o tomei minha febre terçã

a terra rolou em nosso suor
e o chão foi canteiro
das sementes que seu pulsar espalhou

ainda nascem sempre-vivas ao redor daquela palmeira.

23.5.19

sob a égide da poesia

em tempos de desmanches
carne fosca
ares intermitentes
poesia morde o gosto do dia
ignora ossos
e exige
que se corte os pulsos

ó doce senhora
esta que faz sangrar versos e passar a vida a ferro!

15.5.19

tempo de se buscar

passa as horas
a subir e descer o asfalto

seus dias são sacolas
os caprichos da patroa
a menina a lhe entortar a coluna

as noites sangram solidão

beija a foto da mãe
lembra os tapas do pai
o corpo ensanguentado do irmão
há um mundo a se lamentar
balança-se sobre seus abismos e cantarola
entre dós e rés pede às marias
pregadas nas paredes do quarto
que lhe deem pipas e linhas e vento
afinal a vida só respeita
quem aprende a cortar os ares com as próprias mãos.

13.5.19

poema de maio

fui mãe
sem ter sido filha

guardava meus irmãos
o gato que lambia as lágrimas da caçula
e a galinha que nos dava o café da manhã
dentro do meu abraço de menina

muitas vidas depois
transpirava amor em cada dor de parto
amamentava
com os bicos do peito rachados
acalentava as madrugadas
sozinha
a cantarolar jazz ou chico buarque
às vezes beatles emendado ao choro
e a dançar pela varanda estrelada

nunca ouvi canções de ninar

em noites de cólicas
calçava a alma
com meias de funcho ou hortelã
deitava sobre ela o menino
adoçava as histórias que vivera
e medindo com os passos as tábuas do chão
esperava seu sono chegar

não conhecia as pérolas infantis

hoje
após tanto chão
aprendi que aconchego
não importa quem dá
importa que se dê

mãe é bem mais que um poema de maio.

há muito não te desenho elefantes



não tenho muito tempo
depois de tambores e decibéis elevados
a noite já se anunciou silenciosa

da janela vejo flores à beira da calçada
a enfeitar o inverno que se anuncia
perenes
como este querer que em mim é conteúdo
de plumas
doçuras
gratidão de tantos antigamentes

há muito não te desenho elefantes
que nos acheguem na distância de suas patas
nem te dou de presente
pérolas que invento
assentadas em mil seios de conchas

talvez devesse esperar junho

seria quase nada
fazer do seu dia
apenas alusões a uma vida inteira poética
que dribla geografias
a lançar redes em todos os meses do ano
e distribuir peixes
multiplicados em estatísticas de carinho

não tenho mais tempo
talvez amanhã eu te dê uma braçada de flores que te mereçam.

9.5.19

a flor e o medo

ouço tua voz e choro contigo

dói
não te dar a vida
daquela flor
que o poeta viu furar o asfalto
vencer a náusea
o nojo
o medo

para que dela possas colher
o milagre da respiração

dói
não te ver aspirar de levinho
a esperança
e agarrar com força
as lutas que já te batem à porta

ouço teu choro
grito por aquela flor que na fragilidade se fez vida.

8.5.19

sangramento

acordei procurando baldes
:
aparei o sangue
das feridas que me fiz
dos ossos que quebrei
do sal com que lanhei meu peito
ao te dizer adeus

precisava me matar
para te matar em mim

logo
muito em breve
renascerei árvore 

do esquecimento há que se esperar novos frutos.

26.4.19

queres saber?

queres saber?
explico-te
o que é falta

acordas de um pesadelo
a noite nunca alcança o sol
e não tens um nome para gritar

no joelho uma ferida
com aquele olhar vermelho
a latejar pelo beijo que alivia

um choro atrás da porta
abundância de lágrimas sem som
à espera do conforto de um abraço

queres saber?
explico-te
o que é dor

depois de jungs e lacans
de rendilhar amorosamente uma família
descobres a falta de um rosto para lembrar.

25.4.19

constatações de um fim de tarde

estou só
e isso não me dói
esta solidão é escolha minha
troféu de minhas liberdades conquistadas
parceira dos meus desnudamentos
dos livros que guardo com ciúme de amante
das transgressões bukowskinianas
de prazeres que me permito nas minhas reinvenções
não
ela não me dói
nem tenho medo de evocá-la
solidão só me machuca
quando vira ritual de desacompanhamento.

23.4.19

teia

sabia 
precisava despir-nos 
daquela pele de casal  

o coração do fogo
lambia minhas vontades 
:
um dia eram as chamas 
no outro as geleiras 
um dia era o corte 
no outro as suturas
  
e o tempo a nos separar   
na teia  que a realidade tecia. 

nós e nossos passos

como se estivéssemos  
chegando 
à beira dos dias 

como se pudéssemos  
mergulhar 
em minutos repetidos 

como se conseguíssemos 
anular 
as nossas omissões 

insistimos 

a cada ano 
reinventamos 
um tempo novo 
que de novo 
terá nossa espera 
construções 
e outras alianças 
: esperança 

então  
novamente seremos nós e nossos passos 
sob a chuva fina 
de um verão que anunciará outros e novos arco-íris. 

mar adentro

tua poesia 
escrita com a minha língua 
(furioso poder 
de oceano) 
inundou-nos por inteiro 
desde o verso primeiro 
(a ondular  
em teus lábios) 
até o expirar em gotas 
da última rima 
(afogada) 
no profundo da minha boca.