13.4.19

ave maria da penha



hoje uma mulher acordou sozinha

a cama tinha jeito de sonho
seu corpo sem marcas de dedos
as cortinas lhe davam bom-dia
não havia roupa suja pelo chão
o quarto sem cheiro de bebida
no tapete o cachorro dormia
e debaixo do travesseiro
não havia a arma do marido

hoje uma mulher acordou sem medo

os seios não tinham hematomas
não havia dor ao pentear os cabelos
seu estômago cantava de fome
a calcinha não estava rasgada
seu filho respirava tranquilidade
ouvia o som das juritis no telhado
o silêncio nas portas do armário
a certeza do amanhã pendurada no dia

hoje uma mulher tomou posse de sua vida.

quando era paixão

vivíamos suspensos
na respiração um do outro
nas mãos que se comiam lascivas 
nas línguas que inventavam tempestades
gozávamos intensidades
no abraço de nossas satisfações
sonhávamos o próximo gozo
e se um de nós morria
a fome do outro soprava-lhe vida
agora a paixão virou amor
sem nenhum incêndio que ameace nossos edifícios
então não me peça licença
tenta-me
surpreenda-me
faça-me novamente flor de coitos
mate-me para que eu possa me desfolhar em ti
o amor guardaremos para o final do outono.

tarde de domingo

acordo com os olhos fechados
abri-los é meu exercício mental
mas já é quase meio-dia
eu me cobro
e daí? responde a voz da rebeldia
você aposentou-se do relógio
dê-se ao luxo de repassar mentalmente
aquela história que ainda não viveu
ou quem sabe escandalizar os vizinhos
com sua solidão acompanhada de lollapalooza
gravada na maçã comida que seu dinheiro comprou
me viro
remexo o lençol
desligo o ar condicionado
e me lembro
- netos
domingo é dia de me esparramar no tapete
morder as perninhas de um
fazer pose para as fotos do outro
machucar as pernas brincando de gata cega
levanto saltando meninices
o tombo no banheiro é apenas um detalhe.

crash

quero teu corpo
sem sinalizações

apenas pistas
escorregadias
em risco
iminente
de desmoronar

na ponta da minha língua.

estrela da resistência

quando uma guerreira é morta
nasce um símbolo
uma estrela
que guia os caminhos da liberdade

quando uma fortaleza tomba
constroem-se outras
sobre o sangue
de quem se deu pela justiça

maria 

de todas as cores
de todos as classes
de todos os gritos
guerreira
que será sempre revolta
na emoção
na memória de todos os gêneros

mulher 

nunca deixará de ser
estrela que aponta os caminhos da resistência.

cacos colados

tem noites
em que me invade
a certeza 
de que a vida
com seu sorriso irônico
faz do meu corpo
uma fotografia
indiferente
ao choro à ausência à dor
e transforma as lembranças
em um mosaico colorido
de cacos colados
com as salivas do amor

nestas noites
me entrego por inteiro
ao meu próprio abraço
e me embalo
na solidão das fantasias
plantadas pela urgência da saudade.

sábado sem cura

há um verso se insinuando em mim

o verso conversa
cutuca
maltrata
desperta suspiros

debochado
enfia as unhas
na minha seriedade
me mostra o corpo
embrulhado em outro corpo
corta meus pulsos
e me promete delicadezas

este verso é um grão de mostarda
cresce anormal
espinho na carne
sem nenhuma promessa de cura
sem nenhuma possibilidade de poesia
só um sábado de pouco humor

chove
não há guarda-chuva que me faça boa companhia.

(ins)piração

gatilho enferrujado
masca )
trava
explode desordens
em meu bico de pena
:
natimorta ideia
de um novo poema.

(inspirado na poesia de Bruno Candéas)

embalo

meu abraço
:
mítica que me protege
das estalactites de tua ausência.

tecidos e tessituras

hoje quero pausa
nas espadas e nos leões 

esquecer calos e alexandrinos
esconder rebeldia rimbaudiana
apagar assombros e redenções

quero desequilíbrios
entre tecidos e tessituras

pés
desacordando distâncias
e sapatos
embarcando tempestades

quero poeta
plantando no suor das pedras
:
prosa pedindo pausa ao poema.

ainda somos nós

pelas frestas da janela 
raios de purpurina 
ensaiam o brotar das violetas 

um perfume de despedida
invade a madrugada

sangue de estrelas
caídas
do céu de nossa boca
abraça
os corpos saciados

somos nós e a falta de um amanhã

mas ainda temos os cortes dos silêncios
e nossas asas de origamis.

monólogo à la pressão


esta coisa
que chamam depressão
tem gosto de dor
mas é só um vazio
um nada que nunca sei de onde vem
nem quando quer ir embora

para lá de enganosa
não passa da afirmação
do fluir e do destruir dionisíaco
sabedoria trágica do já conhecido
que me leva a escrever escrever escrever
em busca do sentido de existir

desconfio
tenho quase certeza
depressão é minha carne exposta ao vir-a-ser.

a rua, um mundo

o sertão
há muito já não era lembrança

perdeu a bagagem
o choro
a identidade

ficou a fome
corroendo os dias
isolando-o
de qualquer humanidade

a rua era seu mundo

quando
mais nada esperava
viu-se resgatado

assustou-se

em seu corpo
uma corrente gelada
de medo

medo de ter-se esquecido do que era ser gente.

gato blues

no que restou
da minha insônia
tive certeza
que meus seios eram meninos
brincando na chuva
da tua saliva
acordei reincidindo blues
o gato vizinho me olhava com fome.

no fio da esperança

há anos uma menina foi arrancada do peito
não houve tempo para tirar-lhe o cocar
ficou a despedida cantada por um rouxinol
e os anos a ninar o vazio do abraço
nos últimos meses choram curumins*
:
vermes
febre amarela
desnutrição
os médicos se foram
ficaram os olhos cada vez maiores
o chão coberto de folhas secas
enfeitados de camucis*
que a cada dia
explodem lágrimas em coração de mãe
escolas já não há
índio não carece estudar
o programa é de extinção
escrita na lama
que secou as águas e os bokas*
do watu*
última salvação dos orgulhosos krenaks*
ontem uma barraca foi montada do lado de lá do rio morto
um antigo cocar de duras penas
enfeitava o estetoscópio sobre um jaleco de esperança..

minhas construções


nunca tive medo
dos confrontos que escolhi

meu medo
é perder o lacre
que garantirá para sempre
a caixa preta
que me mantém na contramão

a lógica
que me coloca no mundo
é só uma das proparoxítonas
nas paredes das minhas construções.

por conta própria

quero 
não ter que viver

noites
que se deitam
nuas das lembranças
que vestem minha vida

dias
que acordam
olhos de assombro
que despem minhas feridas

quero existir
por conta própria

eu, bicho implacável de mim.

insânia

vou-me esculpir em tua boca
florescer em tuas vontades
e ao colar-me em teu visgo
cobrir a noite a gozar-te

(para não me afogar em tua ausência
fiz-te prisioneiro em meus lápis de cera)

pátria áurea

útero 
que gerou esperança
hoje sangra 
as indiferenças
que sobem e descem morros
fervem em panelas vazias
batem portas que fingem lados iguais
levam crianças a se perderem em faróis

útero
que gera bala na nuca
sangue no asfalto
órfãos de pais e filhos
lágrimas
e os que resistem
são ventres livres para futuras prisões

a mão que imortalizou o treze de maio
deixou nas entrelinhas o terrível cheiro da segregação.





resistência



não dei a ninguém o direito 
de me jogar no chão
de arrastar no asfalto
meus sofridos sonhos
quebrar as pernas
da minha esperança
nem imaginei ver
esta enxurrada de injustiças
e a insolente destruição
dos caminhos que conquistei

acham que assim vão me calar?
posso demorar mas me levantarei

com a força
das minhas verdades
desmentirei os mitos
porque sou quilombola
porque sou kantaruré
porque sou os pés descalços
dos morros e periferias
porque sou as rachaduras
da pele moída de sol
porque sou o grito
deste incansável brasil

minha resistência surpreende?
posso demorar mas me levantarei.

colheita

durante anos
plantaram cadeados
em meus sonhos e ideais

sobrevivi
à falta de amanhãs
plantando no imaginário
um campo de mandacarus

em cada raiz
uma chave para minha resistência
e a liberdade de cultivar espinhos e heróis

hoje mato meus dragões com a colheita de versos.

pesadelo

não eu não me afoguei
não neste mar alumbrado
onde vejo boiar páginas da minha vida
nelas
os grilhões da minha poesia

vejo meus pés
estão fincados na areia molhada
minhas pernas são grossas e têm pelos dourados
meu corpo suaviza-se na dança do vento

pressinto que ainda não me afoguei

belisco-me
meu terror se enche de esperança
são apenas marés gritando espumas
a saudar o anoitecer que dobra sobre o horizonte

maravilhosamente
venço-me e aos meus medos
sou apenas uma náufraga no mar dos meus sonhos
a arder-me por dentro
na nova coragem de vencer minhas pálpebras
morder os meus lábios
e acordar

ao longe
bem ao longe um sax deita um jazz à beira da noite.

banalidades

enquanto no campo 
fogo invade paisagem
em minha cama 
arde uma centena de sóis
da janela vejo evaporar as pedras
o andar pulado dos gatos
- vadios como eu queria estar

preguiça invade os trezentos fios 
prende meu corpo
à beira da desesperança
poesia toma uma forma estranha
em minha vontade de alcançá-la
- quase uma espada
em gravura encomendada

sobre meu coração uma prancha de surf
um piano
uns olhos felinos me comendo
aquele amor de verão
- recordações

hoje adoraria amar um argentino
talvez um russo 
um paulistano
ou um poeta a quem pouco importasse
a banalidade dos meus versos

uma poesia
que conhecesse a fome das minhas mãos.